Entrevista com a artista Isabel Favila
12 - mai - 17
A artista plástica Isabel Favila esboça por palavras a mesma arte que partilha nas suas telas. À conversa com a BOL, expressou o que sente durante o processo criativo. Fala de angústia, de um certo desapego e de auto-conhecimento. Isabel revela o que a inspira a pintar, fala sobre os seus trabalhos e da Cultura em Portugal. Uma entrevista sobre afetos, para celebrar o Dia Internacional dos Museus.
Isabel Favila
O que é que a Isabel sente quando pinta?
Normalmente oscilo entre, por um lado, um grande entusiasmo, uma vontade e prazer imensos ligados à descoberta do desconhecido, pela concretização do imaginado, pelo superar-me, e por outro, o desespero de não estar a conseguir, de não ver brotar o idealizado, de não perceber o que devo fazer ou desfazer para deixar (re)nascer. Depois, de repente acontece, como se sempre tivesse sabido como fazê-lo! Em ambos os casos há momentos de muita adrenalina, desassossego, angústia, luta, insistência, persistência e capacidade de saber o momento certo de quando parar e deixar o trabalho “respirar”. Da mesma forma há momentos de pura serenidade, de deleite e puro prazer.
É uma experiência intensa...
Digamos que tudo gira em torno do binómio o conhecido, sabido/o desconhecido, por descobrir. Entre o quando me aprisiono ao “tudo sob controlo” e o quando me aventuro a deixar-me ir. Assim descrito, parece que depende de uma mera decisão consciente e lógica, mas de facto não é fácil manter-se no imenso deleite do ponto certo do ato criativo em que o racional e o imaginário se combinam no ponto certo como se de uma dança se tratasse: “ora comandas tu, ora eu”, num perfeito resultado de duas vertentes que se fundem. Tenho por sinal desse prazer no acto de (re)criar a posterior consciência de que perdi a noção do tempo passar. Também foram algumas as vezes em que durante o ato de pintar me emocionei após um grande esforço, uma grande insistência, ao deixar-me ir, ao ver finalmente acontecer o tão procurado! É uma sensação única!
Quando estou a pintar regular e diariamente sinto claramente uma maior serenidade global. Quando não, estou frequentemente a ter ideias para o fazer, muito consciente da falta vital que faz esta prática.
O que é que a inspira a pintar?
Pintar é para mim uma forma de me descobrir, de me pensar. De digerir e gerir o que vivo, de concretizar o que muitas vezes ainda nem sei que sinto ou senti. É nessa medida uma espécie de instrumento de amadurecimento, de auto-conhecimento, de descoberta dos meus desconhecidos. É também uma forma de fazer “descer”, ao concreto, o abstrato. Pelo puro gozo de o ver surgir, de concretizar o que parece não existir, os que só se podem imaginar. Sejam eles lugares, ambientes, seres ou sensações. Também me fascina a cor, compor e combiná-las [as cores], descobrir-lhes luzes e sombras em tons inesperados e assim fazer brotar um ser, um ambiente, um (im)possível em 3D, numa superfície bidimensional. Talvez seja essa a principal razão porque optei seguir Pintura em vez de Escultura.
Como definiria os seus trabalhos?
Os meu trabalhos são normalmente a representação de seres, histórias, lugares, ambientes imaginários, afinal mundos sentidos e vividos no mundo real. Entre os anos de 2003 e 2008 foquei-me especialmente na prática do retrato. Dessa forma abordei a vertente prática do meu mestrado teórico-prático cuja temática questionava a pertinência e necessidade desta prática no mundo contemporâneo em que o retrato através da ciência literalmente saltou da tela para o próprio rosto humano. Ainda que aparentemente representando a realidade, pretendia afinal focar o invisível, a aura, a alma do retratado questionando o trio ser/parecer/ter. De facto esta ginástica de ideias que nos movem, que nos fazem ser ou acharmos que somos, iguais, diferentes, parecidos ou opostos, é a outra ginástica que me inspira a pintar, a (re)criar: chamo-lhe a arquitetura dos conceitos, uma imensa e infinita estrutura que os liga, numa imensidão de links em que cabem todos os sentimentos, ideias, pessoas fazendo ligar opostos e distinguir o que parecia tão semelhante.
Como é que um artista cumpre o processo entre a criação das suas obras até ao momento em que as expõe ao olhar crítico do público?
É normalmente um tempo de contemplação, de digestão do trabalho que brotou. É um tempo de afastamento do mergulho dos mundos recriados. É um tempo em que normalmente (re)crio os meus trabalhos, descubro-lhes novas dimensões, relembro que o trabalho está sempre a ser (re)feito conforme muda o nosso olhar. É um tempo de preparação para o deixar ir. É também um tempo de escolha de depuração e seleção, nasce assim uma família de trabalhos que será exposta, que exporá uma parte de mim.
Sente que perde um pouco de si de cada vez que vende um quadro?
Já senti, sim no início, nas primeiras vendas. Sempre que escolhia um quadro numa exposição para ficar como recordação, surgia logo uma fila de espera para se eventualmente eu mudasse de ideias. Muitas vezes acabei por mudar, e durante algum tempo tinha pena de ter vendido. Mas os trabalhos vão-se sobrepondo uns aos outros e aos poucos aprendi que o trabalho não me pertence, no sentido de que ele se completa no usufruir do outro. Se o trabalho for capaz de emocionar um outro alguém, para além do meu controlo, da minha ideia, ele será bem para além de mim. Logo o meu trabalho completa-se verdadeiramente indo “de mão em mão”. Aí eu sou apenas veículo de um desconhecido que se concretiza com cada novo observador. Dos muitos quadros que até hoje pintei tenho apenas três como meus, que não vendo. Isto de forma a ter uma recordação de três das fases mais marcantes e distintas do meu percurso. Tenho apenas um que ainda lamento ter vendido sobretudo pela carga emocional e pessoal que lhe associo tanto em termos de temática como de nível atingido numa técnica de grande pormenor e minúcia.
Tem por hábito querer saber quem é o comprador, ou qual o destino final da obra? Ou existe um desapego natural do autor face à sua obra?
A resposta anterior responde em parte a esta questão, mas sim, apesar do que aí respondi, gosto sempre de saber por onde andam os “meus” quadros. No entanto os registos a que me dediquei desde o começo da minha carreira, no início dos anos 90, em grande parte deixaram de fazer sentido. Os contactos nesse tempo eram maioritariamente as moradas, os telefones fixos, posteriormente alguns telemóveis. Hoje as listas de contactos são mailling lists, são contactos de Facebook, e quando muito, números de telemóvel. São muitos os quadros cujos donos calculo sejam os mesmos, mas raros os que tenho o contacto, alguns tenho reencontrado no Facebook.
Em 2015 apresentou trabalhos de desenho e pintura numa exposição conjunta com a sua irmã, Inês Favila. Pode falar-nos um pouco sobre essa experiência?
Foi uma ótima experiência há muito falada e finalmente concretizada. Nos últimos anos chegámos a expor e a trabalhar mais de uma vez com as mesmas galerias, mas só em 2015 nos dispusemos finalmente a juntar os nossos trabalhos na mesma mostra. Penso que foi a altura certa, o meu trabalho estava focado em ambientes imaginários, pela primeira vez sem personagens, assim dando espaço para conviver com os trabalhos da minha irmã. Os meses de trabalho que antecederam a exposição foram extremamente enriquecedores pois a partilha da evolução dos nossos trabalhos, que já acontece normalmente, naturalmente foi muito mais assídua e desafiante nessa altura. As combinações de cores, os ambientes, a profundidade e as transparências, o gosto pelos pormenores revelaram a meu ver raízes muito semelhantes. É definitivamente uma experiência a repetir.
A Isabel já participou em oficinas criativas para crianças…
Faço do ato de ensinar um ato de partilha, partilha de um know how em que encontro um imenso prazer, uma imensa realização pessoal, por isso quero tanto que outros o descubram! A ideia de que um outro está receptivo/interessado/curioso por essa espécie de maravilha que eu conheço, desde logo desperta o meu afeto, a minha disponibilidade. Logo, encho naturalmente de afeto esse ato de ensinar. Acredito que o jeito se aprende e que se descobre prazer em aprender à medida que vamos conseguindo perceber. À medida que conseguimos concretizar o apreendido. Que o novo adquirido é digerido e passa a ser nosso, ou melhor, quando este passa a fazer parte integrante do que somos. Esse prazer amplia-se quando vemos resultados e ao aprendermos a descobri-los inclusive no que antes nos parecia um erro.
Tenho por lema que o jeito se aprende e que a vontade se estimula... Aqui entra, e conta muito, o afeto mas também o incentivo, de braço dado com a aprovação, mas também com o desafio!
É difícil ensinar crianças a pintar? Ou serão os adultos os mais difíceis…?
Quanto a ser difícil, é como conhecer uma pessoa: no princípio estou a conhecê-la, ainda só estou curiosa, não deixo de gostar dela, mas também ainda não gosto dela, às vezes ainda nem tenho vontade, mas decido tê-la, porque sei que ela vem logo de seguida.
Quanto a idades, contam pouco, mas ao fim destes últimos cinco anos com o projeto das aulas a andar, ultimamente tenho concluído que talvez a adolescência dificulte um bocadinho, sobretudo quando a relação já é de confiança. Pelo questionamento insistente, pela resistência que de fora parece sem sentido, pela diminuição de capacidade de concentração e de persistência. Mas acredito que contam mais os feitios, as histórias de vida. Há pessoas que levam mais tempo a acreditar que conseguem, outras levam mais tempo a rir de si próprias, outras a acreditar que gosto mesmo delas, que são únicas e especiais, e que logo também o são para mim. Estas últimas são as mais difíceis, as que levam mais tempo, mas as mais gratificantes quando se derretem em jeito personalizado. Falta dizer que as crianças e adolescentes mantêm-se sempre em aulas normais que envolvem exercícios sempre renovados e adequados às necessidades pessoais de cada um, de cada grupo e exigindo um acompanhamento mais próximo e contínuo a cada aluno. Já os adultos e jovens facilmente passam para aulas de acompanhamento em que pintam em autonomia e eu apenas vou ajudando e desafiando quando pedem ou quando acho que é necessário.
Foi um desafio ser figurinista de dois filmes portugueses? Como é que aconteceu, por acaso? Ou sente-se atraída por diferentes expressões artísticas, neste caso o cinema?
Foi sem dúvida um óptimo desafio! Aconteceu porque o produtor Paulo Branco procurava na altura alguém que pudesse apoiar o cineasta Manoel de Oliveira na escolha do guarda-roupa para a longa metragem “Viagem ao Princípio do Mundo”. Segundo me lembro, pretendia-se uma equipa reduzida e tenho a ideia de que a Isabel Branco, que habitualmente ocupava esse lugar de confiança junto do Manoel, não estava na altura disponível. Acontece que sou prima da atriz Leonor Silveira e que esta se lembrou de mim. Eu estava de férias e tinha acabado de me despedir do CPAI [Clube Português de Artes e Ideias] para retomar a pintura com maior afinco. Na altura pareceu-me impossível, era apenas pintora e nada sabia de cinema, mas acabou sendo uma nova escola artística e de vida e um enorme e gratificante desafio. Trabalhei ainda em mais quatro filmes, tanto em guarda-roupa quanto em décors. Também já trabalhei em adereços de teatro. É verdade que sobretudo entre os 20 e os 40 anos, aprendi muito nestes contactos com diferentes formas de expressão artística, através deles contactei com outras realidades, outras formas, processos e estruturas de criação e de estimulação da criatividade que me ajudam ainda hoje tanto no meu processo criativo como no de o estimular. Também conheci lugares e pessoas inesquecíveis que em muito enriquecem o meu imaginário e o que hoje sou. Claramente sinto-me atraída por diferentes expressões artísticas, nomeadamente a fotografia, o cinema, a escultura, mas hoje elas giram em torno de dois focos profissionais: pintar e ensinar/estimular a criatividade nesse âmbito, no do coaching e no da reabilitação do indivíduo, dos 3/4 aos muitos anos de vida.
Como olha para o estado da Cultura em Portugal?
Olho com a mesma esperança com que olho para o nosso Ensino. Acredito que com pouco se faz muito. Acredito que haverá sempre alguns de nós para quem o poder e o dinheiro não são tudo. Acredito que esses sempre porão de lado interesses pessoais apostando numa franca missão de preservação, renovação, e evolução culturais. Que levará muito tempo, mas que um dia perceberemos que a Humanidade está acima de tudo, que a Cultura é ao mesmo tempo eco, grito de alerta, fonte de sensibilização das mentalidades também para esse facto, que então em maior número e de formas mais eficazes zelaremos por isso.
Os outros? As pessoas? O sistema? Sinto que faço parte desse global e que antes de apontar o dedo me cabe agir na humilde consciência da minha pequenez, mas de forma responsável e comprometida. O sistema somos todos nós. O que se passa no metro quadrado de ação de cada um de nós é da nossa responsabilidade, tanto direito quanto dever, e acredito que uma grande caminhada começa sempre por um simples primeiro passo. O meu é certamente o que mais está ao meu alcance.
É fácil para um artista português ser reconhecido internacionalmente? Porquê?
Apesar de não estar suficientemente por dentro da situação na atualidade, acho que não é fácil. Sei que continua a haver muitos jovens artistas que continuam a insistir em percursos artísticos, sobretudo ao nível do estudo, pós-graduações e residências temporárias fora de Portugal. Mas penso que o incentivo continuado e acompanhado de um franco reconhecimento fora do país que ultrapasse a esporádica presença em feiras ou exposições internacionais, continua a ser possível apenas em raras exceções. É um caminho de persistência e tenacidade que só ajuda à evolução do trabalho. Penso que os resultados positivos nesse campo acontecem por acréscimo, o foco deve estar no trabalho de si.
Que exposições recomenda “a não perder” neste momento em Portugal (ou lá fora)?
“Operação Condor“, do fotojornalista João Pina, no Torreão Poente da Praça do Comércio, ambas em Lisboa.